A iniciativa da convocação e organização das manifestações ter partido dos movimentos sociais, de sua auto-organização, foi muito importante. Evidenciou o engajamento popular com o descontentamento traduzido pelas organizações sociais. Essa reação genuína surgida nas bases, sendo fortalecida, se ampliará pelo corpo social, contribuindo para a renovação da vida política do país, mesmo que não seja por um passe de mágica. Em seu lastro podem e estão surgindo ações que intensificarão o movimento e a massa de pessoas na rua. A conjuntura ganha a cada dia um ritmo mais febril.
Manifestações populares têm algo de “instituinte. Se não são um “fazer” a partir do nada, também não são algo acabado, “instituído”, que já existe com regras próprias e definidas. Em nosso caso, surgiram de uma realidade que atingiu limites extremos e intoleráveis: milhares de mortes, que já superam 520 mil, por intencional descompromisso de um governo que ataca direitos, entrega o patrimônio nacional, eleva o desemprego, promove violências e milícias e protagoniza uma enxurrada de notícias na contramão de tudo que possa ser esperado como menos ruim, como o caso recente do vergonhoso superfaturamento da compra de vacinas; sem falar do assassinato de Lázaro, o matador de aluguel do Agronegócio.
Mas, como disse Marx, se numa situação de crise os fantasmas do passado e do presente, nos condicionam, ao lutar para deles nos libertar, só podemos fazê-lo construindo o novo. E é nesse processo de construção que temos a oportunidade de nos transformar a nós mesmos, tornando-nos aqueles e aquelas que com sua luta intervêm e modificam o que foi herdado. É assim que fazemos história.
Com seu caráter “instituinte”, essas manifestações trazem em si a potência da vida política de onde nasceram. Portanto, apesar da luta dura que ainda atenhamos pela frente, é preciso aproveitar as melhores virtualidades de uma grande massa de povo nas ruas, com sua emoção e criatividade para criar o novo. Estimular nessa brecha de superação, a perspectiva de um projeto futuro de país, mais humano e justo, de recuperação dos direitos perdidos, de mais democracia. É essa a oferta que, paradoxalmente, apesar do caos instalado, a história nos concede, com todos os riscos e fragilidades que a situação pode implicar.
Podemos, em muitos aspectos, não nos sentir e nem estar preparados como desejaríamos, para imprimir a orientação mais correta e precisa a este momento. Não importa! Mas é preciso tentar, diante da urgência e da oportunidade que o momento oferece, buscar alcançar a capacidade para dar, sempre com mais precisão e acerto, o passo seguinte. Tentar reunir as melhores ideias e apontar orientações mais seguras do ponto de vista de uma direção política que beneficie a todos e todas, que agregue as diferentes forças políticas, que mude o vetor desagregador que tem desorientado as relações sociais. Buscar a unidade dentro da pluralidade. Estimular em cada uma e em cada um a vontade de colaborar, somar, ser solidário, inventar formas que superem os obstáculos que se interponham para alcançar o objetivo deste momento. Práxis revolucionária é isso!
Nas avaliações feitas sobre as manifestações, há uma expressa preocupação de que o foco deva estar no problema mais grave – a ingovernabilidade do país e as consequências destrutivas do programa neoliberal que tem sido implementado. O conteúdo dos atos de rua não deve se misturar com qualquer outro que possa causar incômodos entre aqueles que organizam o movimento, nem entre os convocados a dele participar. Um exemplo de conteúdo impróprio, sempre mencionado, é a corrida eleitoral de 2022.
Essa orientação está correta e deve ter todo apoio. Mas, não podemos nos esquecer de aproveitar as virtualidades dessas manifestações. Elas ensejam a reafirmação de valores democráticos, de ideais e princípios direcionados à construção de uma outra sociedade, de um projeto de país, a ser iniciado desde agora, com organização, formação política, fortalecimento da democracia, luta pela recuperação da soberania nacional e propostas para a reconstrução do país. Tais propostas devem estar sedimentadas em condutas e valores, que façam o debate crítico sobre o capitalismo como principal responsável pelas situações extremas a que chegamos. Essa é uma tarefa para a qual todas as pessoas estão convocadas, independentemente de partido, religião, crença, ideologia ou orientação sexual. A propósito, é inegável o ativismo das mulheres na organização das manifestações, mobilizando grupos diversos de mulheres – negras, indígenas, quilombolas, de terreiro, das águas e das florestas -, contribuindo desta forma, com a construção deste momento histórico de resistência ao fascismo e a um governo que tem na população feminina, alvo prioritário de ataques.
A partir dessa compreensão, muito, talvez possa ser feito para ampliar a massa de pessoas nas ruas. A começar pelas redes: intensificar, reforçar e explorar ao máximo seu uso. Focalizar a criação de novas, criativas e fortes ‘palavras de ordem” que façam a denúncia do desgoverno, que atualizem por diferentes meios e linguagens os acontecimentos; que estimulem por meio de novas ideias a valorização da democracia; que sinalizem para além do expurgo que precisamos fazer dessa realidade indesejável, para a necessidade de diálogo, de convergência, de acordos em torno de pautas básicas.
Estamos vivendo um processo que também tem o poder de recuperar a esperança e a crença de que podemos realizar com êxito o enfrentamento ao fascismo, ao capitalismo destrutivo, oligopolista, destruidor de vidas humanas e da vida no planeta. Essa luta pode ser uma experiência por meio da qual venhamos adquirir mais imunidade, mais argúcia, contra os vírus – da pandemia e do capitalismo.
Finalmente, é fundamental passar ao largo da podridão de palavras, gestos e sentimentos que nos são cinicamente impostos, diuturnamente, por aquele que ocupa a presidência, pela mídia tradicional, pelo gabinete do ódio e pela própria conjuntura que a cada instante, para nosso desprazer, nos propõe mais “um prato” da miséria que sustenta muitos dos setores políticos do país.
Esse “lixo” tem desviado da militância sempre aguerrida, as forças e a atenção das tarefas urgentes demandas pela situação atual. É urgente se informar, refletir, debater, fazer análises, aprender com as lições amargas e construir contranarrativas, buscando fazê-las chegar – pelos canais alternativos e progressistas – aos diferentes públicos, ruas, praças e residências. Os tempos de paz, geralmente, não nos preparam para a guerra. Por isso, é preciso inundar as redes sociais com frases que estimulem luta, resistência e esperança em um outro mundo, e com paciência histórica, começar a pensar em passos mais ousados, como disse alguém. Os tempos são outros, mas nada deterá o avançar da história. Com a força do povo nas ruas, a concretização daquilo que as manifestações nos apontam será inevitável.
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O que as manifestações de rua nos sinalizam? (Parte 1)
(*) Maria Ricardina é feminista e militante do Coletivo Reflexão e Prática do PT