A crise sanitária do coronavírus não impediu que a tradição da malhação de Judas acontecesse em São Luís. Eles foram muitos, centenas, espalhados pelos bairros e pelo centro da cidade, mas a grande maioria dos bonecos representando o apóstolo traidor de Cristo tinha uma característica comum: procuravam identificar Jair Bolsonaro com Judas, carregando nos adereços – faixas presidenciais, mamadeiras de piroca, cartazes com o nome cloroquina, armas de fogo.
Um dos Judas, deixado no acesso à ponte do São Francisco, um dos pontos mais movimentados da cidade, tinha como companhia dois outros bonecos caracterizando vítimas fatais da COVID-19.
Bolsonaro foi também a figura central de outra tradição da capital maranhense: o Testamento do Judas, escrito pelo compositor, poeta e jornalista César Teixeira. O artista elabora esses escritos desde 1985, quando o texto, ainda datilografado, foi apresentado por César Teixeira, Nelson Brito e Nonato Pudim, na pracinha da Refesa, no centro de São Luís e próximo ao Laborarte, instituição artística que congregava os três “testamenteiros”.
Entre 1990 e 2005, o Testamento apareceu em formato de cordel, com a capa desenhada por artistas plásticos locais, como Erico Junqueira e Cordeiro Filho. César deixou de elaborar o Testamento de 2006 em diante, mas o Laborarte manteve viva a tradição, nos anos subsequentes.
Este ano, diz César Teixeira, “para preencher o vazio da quarentena” e de última hora, o poeta voltou com o Testamento. Eis a íntegra:
TESTAMENTO DE JUDAS
Com mão trêmula escrevo
meu Testamento apressado,
peguei o Coronavírus
antes de ser enforcado.
Também fui traído um dia,
o tal de Jair Messias
me apontou como culpado.
Deixo para o Bolsonaro
um caminhão Lava-Jato
pra lavar tanta sujeira
do cabelo até o sapato.
Incendeia feito Nero,
se o Brasil perde de zero
lava as mãos feito Pilatos.
É assim que a Pandemia
no rendez-vous brasileiro
fez cordeiro virar lobo
e lobo virar cordeiro.
O povo vai pra janela
bater na sua panela,
sendo do Pinico herdeiro.
Esse Lobo disfarçado
com um lenço no focinho
logo será devorado
pela Vó do Chapeuzinho,
e vai entrar pelo cano
com os seus milicianos
arrastando os três porquinhos.
Deixarei pro Paulo Guedes
o Fundo de Investimentos
para esconder no bolso
do seu próprio empreendimento.
Esse banqueiro sagaz
aposentou Ferrabrás
pra mode enganar jumento.
Na estrofe que eu deixo
pro ministro Luís Mandetta
quase escapa outra rima
desta minha azul caneta.
Ele foi contra o aborto,
levou a Dilma pro Horto
e os Mais Médicos pra sarjeta.
A máscara da vergonha
deixo pro ministro Moro,
para cobrir o seu rosto
nesta falta de decoro.
E para a cegueira branca
da Justiça, que empanca,
deixo a luz do desaforo.
Para o general Heleno
deixarei as ataduras
que foram do Bozovírus
na facada que não fura.
É o sarcófago letal
que promove o general
a múmia da ditadura.
Na Zona do Meretrício
vou deixar meu violão.
Já botei Rodó no bolso
e a chita do fofão.
Para matar esse vírus
da família dos vampiros
já estou de pau na mão.
A sunga de Patativa,
neste torneio profano,
dá pra fazer uma máscara
pro amigo Corinthiano.
Mas, se fosse da Faustina,
dava pro time da China
e ainda sobrava pano.
Pros amigos cachaceiros
deixo essa “gripezinha”,
mas proponho isolamento
com a sogra e a cachorrinha.
Sem boteco, a gente inventa:
meu barril de álcool 70
já virou caipirinha.
Vejo índios e posseiros
sendo mortos na floresta,
e, enquanto os fazendeiros
fazem do vírus a festa,
restam aos filhos da terra
as balas e motosserras
de uma fúnebre orquestra.
Na televisão, nas redes
sumiram numa semana
os casos de Marielle,
Brumadinho e Mariana,
enquanto um navio afunda
no Maranhão feito bunda,
pensando que a merda é plana.
Lá no relógio quebrado
da Praça João Lisboa
batem as mudas seis horas
da morte que em mim ressoa.
Todos sabem que o caixão
do Diabo vai de avião
e o do Judas de canoa.
Sei que Ribamar Moraes
não precisa de Álcool em Gel,
ele foi pro Paraíso
tirar foto de Noel.
Dar-lhe-ei esse meu terno
quando eu for lá pro Inferno,
que fica depois do Céu.
Esse breve Testamento
só me deu consumição,
é difícil fazer versos
sem dizer um palavrão.
Pra sair na internet
fui no Dicionário Aulete
antes da execução.
Deixo, enfim, a Cloroquina
pra quem é anjo e tem asa,
o Trump e o Bolsonaro
vão num foguete da NASA.
Mas, recomendo aos amigos
pra não correrem perigo:
é melhor ficar em casa.
FIM?
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