O assassinato de George Floyd inaugurou uma nova fase explosiva no mundo. Ele foi sufocado com os joelhos por um policial branco até a morte em Minneapolis, cidade do Minnesota nos EUA. Temos uma coincidência dolorosa aqui. Ele foi sufocado por um racista americano, enquanto centenas de milhares de pessoas morrem sufocadas no mundo todo como decorrência da covid-19. É necessário dizer algo agora, pois o silêncio é a forma de colaboração ativa com o horror global.
- O racismo estrutural é uma forma de opressão social ampla, cuja existência no capitalismo é funcional para que exploração econômica, dominação política e humilhação social atuem – em discordância dos tempos – na garantia que as relações de opressão sejam reproduzidas. O mais importante é a relação de opressão e não pensar a opressão como um objeto destituído de seu conteúdo relacional decisivo.
- Na impossibilidade de que Auschwitz se repita como uma forma imediata de extinção, o capitalismo – através da novíssima fase do neoliberalismo –, elimina parte das pessoas comuns (que hoje é um tipo de proletariado nômade sem pátria), seja através da violência direta (genocídios legais em nome da lei e da ordem, destituição dos sistemas de proteção social que matam por privação e pobreza etc.), seja através da eliminação social (que submete o proletariado nômade à mais brutal forma de “trabalho sujo”, como salienta o filósofo Paulo Arantes). Não é preciso dizer que os negros são a parcela – digamos assim – dominante dos que estão na linha de frente do “trabalho sujo”.
- A aparente disputa entre eliminação e assimilação é um falso problema, pois a assimilação não significou a eliminação da relação de opressão racial, mas ela produziu uma forma paradoxal de “colonização interna”, em que oprimido é livre e sua opressão é mediada justamente pelo exercício da liberdade. Não foi isso que aconteceu com os afro-americanos nos EUA? A eliminação é mediada pelo genocídio das populações negras e pela penalização da pobreza com a política de encarceramento em massa. A guerra às drogas é o ópio legalizado do cinismo que impera na gestão da pobreza, que é utilizada como plataforma eleitoral permanente: da esquerda à direita do espectro político contemporâneo.
- Não é possível que a relação da opressão racial seja ajustada pela falida e cínica política de assimilação. Ademais, o “cancelamento” de racistas é incapaz de apresentar uma solução duradoura ao problema. A questão precisa ser colocada como o próprio objeto do problema primordial. É a impossibilidade de que a situação de opressão racial perdure, dada a impossibilidade de que ela seja ajustada pela assimilação. Os negros serão tratados como “escravos” do sistema inconsistente de dominação compulsiva do império das mercadorias.
- É verdade que a situação de opressão racial desumaniza o oprimido, mas ela também empobrece o opressor. Quando o opressor a aceita, apodrece, mas quando a recusa, nega a si mesmo como sua situação social localizada. Ele se reproduz em meio a uma tensão subjacente explosiva.
- A luta democrática hoje – isto é, a luta no campo do direito e por direitos civis –, confunde o elemento “objetivo” da opressão racial, já que traduz a aspiração da libertação autêntica pela liberdade civil resignada ao império das mercadorias. Tão logo a liberdade formal seja instituída – como foi nos EUA –, a “escravidão” moderna amordaça os negros à condição de desumanização democrática aceitável.
- As revoltas são necessárias e indispensáveis, mas não são reações suficientes para suprimir com o que produz a opressão racial. É por isso que a recusa do oprimido só pode ser absoluta, ou seja, não pode se limitar à revolta, mas a sua própria superação, é necessário que ela apareça como revolução social.
- A existência do opressor produz a opressão, mas é com a liquidação do racismo que a libertação autêntica do oprimido será possível. Nesse caso, temos que dizer que nem racismo, nem capitalismo, separados ou combinados. Trata-se de uma ontologia negativa de barbárie.
- O racismo é uma forma de opressão ampla, mas, sobretudo, ele está inserido num sistema institucional-legal que elimina os negros em escala industrial. Mas não somente. Ele aniquila espiritualmente os negros. Produz condições objetivas em que a vida é transformada num inferno cotidiano vivo. A relação de opressão precisa ser extinta, mas a subjetividade racista que produz homens e mulheres enquanto oprimidos precisa ser eliminada.
- Trump e Bolsonaro são duas bestas globais representantes do fascismo do século 21. Não é possível fazer uma arqueologia da sua condição objetiva atual. Alain Badiou chamou de “fascismo democrático”. Estão no mesmo mundo. O paradoxo é que adotam a falsa simetria entre liberdade de expressão e direito de tudo dizer. Temos que entender que o “fascismo democrático” – de Trump a Bolsonaro – é contemporâneo da democracia que conhecemos. Eles querem silenciar a oposição tratando toda contestação política como atitude terrorista. Os verdadeiros terroristas criminosos são Trump e Bolsonaro. Não temos que tentar salvar este mundo – mesmo que dos terroristas de oficiais de gravata -, mas inventar outro.
- Os acontecimentos de Minneapolis aparecem como o sintoma do que é permanente nas favelas brasileiras. A carne negra não é apenas a carne mais barata do mercado, ela é a carne atemporal em liquidação. É vendida nos aplicativos, é manipulada o tempo todo para abate. A polícia é política, pois a política é policial, ou seja, a polícia é a forma de despolitização do verdadeiro acontecimento. Não temos que reformar a polícia – o outro nome “politicamente correto” para a restauração do horror –, mas proceder sua definitiva extinção.
- A revolta dos negros não é apenas uma reação particular. Ela começa com uma reclamação específica, mas contém em si mesma a universalidade combativa da luta pela emancipação social. Isso não significa que na “comunidade que vem” não teremos mais problemas. Nós continuaremos a ter impasses. O que não teremos são problemas corporificados na subjugação objetiva dos outros, em que a cor da pele, a sexualidade ou sua origem comunitária, não serão limites, mas pontos de partida para um novo tipo de mundo. O mundo que virá é aberto. Somente assim ele não estará fadado ao fracasso e ao horror.
Saulo Pinto é professor do Departamento de Economia da UFMA (Universidade Federal do Maranhão)