As espantosas revelações da advogada Bruna Morato na CPI sobre o que acontecia com os pacientes da Prevent Senior expõem o abismo de horror em que o Brasil afundou na conjugação da era Bolsonaro com uma pandemia como a da Covid. E permitem dimensionar o quanto o Brasil afundou ainda mais depois do abismo de horror da campanha presidencial de 2018, conduzida pelo comando bolsonarista com uma boçalidade nunca vista antes.
Em paralelo com fenômenos como o do Taliban no Afeganistão e como o de Trump nos Estados Unidos, tanto antes como depois de deixar a Presidência, o caso brasileiro pode parecer apenas mais um exemplo de um fenômeno internacional de retrocesso político e cultural.
De fato, a emergência dessa direita extremada e furiosa marca um momento infeliz deste começo de um século que teria tudo para alargar, em vez de estreitar, os horizontes humanos – avanço tecnológico, abundância de riqueza e tensões internacionais reduzidas. Mas essas possíveis vantagens foram anuladas pelo agravamento da concentração de renda e da desigualdade social no mundo, a ponto de menos de 70 pessoas terem o controle de metade da riqueza produzida num planeta de 7 bilhões de habitantes.
Esse fenômeno é ainda mais grave no Brasil, onde a ferocidade da extrema direita constitui claramente a defesa da preservação e do aumento da riqueza em poder da minoria privilegiada. Claramente também o agravamento da pobreza no Brasil oferece exemplos assustadores: por exemplo, o veto presidencial, felizmente derrubado pelo Congresso, ao projeto que suspendia até o fim da pandemia os despejos residenciais por atraso de pagamento do aluguel; por exemplo, a volta da autorização do corte de luz também por atraso de pagamento; idem o aumento do casos de queimaduras, até mortais, a substituição do gás de cozinha pelo uso de álcool na preparação de alimentos; e, finalmente, a também espantosa foto exibida em página inteira na capa do insuspeito jornal Extra, do grupo Globo, mostrando pessoas que quase no centro do Rio recolhiam ossos, pelancas e sebo de animais para usá-los como alimento ou combustível.
Enquanto o Brasil afunda ainda mais nesse abismo de miséria, para o qual a extrema-direita é friamente e absolutamente insensível, outras partes do mundo andam para a frente, mostrando possibilidades de retomada de projetos de melhor distribuição de renda, de redução da desigualdade, de proteção ao meio-ambiente e, em geral, de ampliação da cidadania e dos direitos fundamentais das pessoas.
É o caso, por exemplo, da Alemanha, onde o Partido Verde conquistou cerca de 15% dos votos na recente eleição e se tornou a presença determinante dos rumos da coligação que governará o país pelos próximos anos. É o caso da Suíça, tão arrumadinha e quadradinha, onde um referendo admitiu, por larga maioria, o casamento de pessoas do mesmo sexo, já aprovado pelo parlamento. É o caso, finalmente, dos Estados Unidos, onde o governo Biden, embora envolvido numa nova guerra fria em sua política externa, parte para uma política interna de desenvolvimento e reforma social que tem entre seus principais objetivos o de dobrar o salário mínimo de 7.5 para 15 dólares POR HORA de trabalho.
Na contramão desses avanços, o Brasil convive com um governo cujos índices de aceitação popular despencam, mas tem a garanti-lo contra o merecido impeachment sua blindagem na Câmara dos Deputados, e assim se permite manter uma política econômica e uma ausência de política social que afundam o país no horror da miséria e da fome.
Ao lado disso, porém, temos exemplos animadores de comportamento social e de resistência, que no mínimo suscitam esperanças: a adesão popular à vacinação contra a Covid, mesmo na ausência de campanhas oficiais de estímulo, contrasta com o exemplo dos Estados Unidos, onde a direita liderada pelo ex-Presidente Trump, conseguiu arregimentar, sobretudo nos Estados governados pelos republicanos, um considerável continente de cidadãos antivacina que impedem a imunização dos norte-americanos em escala suficiente para a segurança de todos.
Nisso, pelo menos, o Brasil não está na contramão. Graças, apesar da conduta do governo, aos brasileiros e ao nosso SUS.
(*) José Augusto Ribeiro – Jornalista e escritor. Publicou a trilogia A era Vargas (2001); De Tiradentes a Tancredo, uma história das Constituições do Brasil (1987); Nossos Direitos na Nova Constituição (1988); e Curitiba, a Revolução Ecológica (1993). Em 1979, realizou, com Neila Tavares, o curta-metragem Agosto 24, sobre a morte do presidente Vargas.