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Maternidades brasileiras I

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Peço um anjo que me acompanhe.

Em tudo via a voz de minha mãe

Em tudo via nóiz a sós neste mundo incerto.

(…)

Até o meu jeito é o dela.

Amor cego escutando com o coração

 a luz do peito dela

Descreve o efeito dela breve, intenso, imenso (…)

Desafia, vai dar a mó treta

Quando disser que vi Deus e ele era uma mulher preta.

(Mãe, Emicida)

 

 

Maternidade precisa rimar com liberdade, com escolha. Gestar e cuidar da vida continuam sendo atribuições eminentemente femininas, de pessoas com útero, envolvendo o corpo e a vida das mulheres. Em nossa sociedade, entretanto, a maternidade ainda é mantida com caráter compulsório, diferentemente da paternidade que ainda preserva caráter optativo. Repetem-se, também aqui, as desigualdades de gênero.

 

No Brasil, um homem pode postergar indefinidamente o reconhecimento de uma criança como filha, pois temos uma lei da paternidade, desde 1992, relativizando esse reconhecimento. Um Judiciário sexista contribui para a eficácia de medidas protelatórias adotadas por aqueles que desejam permanecer longe de responsabilidades parentais. O pai, indicado pela mãe, é mantido no Judiciário brasileiro eterna e sexistamente como suposto pai e a instituição continua mantendo a palavra da mãe sob suspeita. A solução está na inversão do ônus da prova da paternidade, oferecendo um prazo para o pai indicado pela mãe provar não ser o pai.

 

O vínculo frágil do homem brasileiro com seus filhos foi internacionalmente exposto com o futebol. A composição da seleção na última copa do mundo – na Rússia, em 2018 – retratou isso. Entre os 11 jogadores titulares, seis não tinham reconhecimento paterno: Miranda, Thiago Silva, Marcelo, Casemiro, Paulinho e Gabriel Jesus. Este, a cada gol, telefonava para a mãe, Vera Lúcia, comemorando. Seu Alô, mãe – homenagem a ela – ficou conhecido pelo mundo. O pai deixou Vera quando ela anunciou a gravidez. Mas essa mãe se dedicou muito ao filho que admite: Quando ia aos jogos e via meus amigos, sentia inveja por não ter um pai presente. Mas do jeito que minha mãe me criou, eu logo esquecia que tinha pai [ausente].

 

Se mais de 50% dos integrantes da seleção de 2018 não tinham reconhecimento paterno, na população geral do país, otimistamente, estimo em 10% não assumid@s pelos homens-pais, resultando em pessoas sem reconhecimento paterno. O país tem uma população de 210 milhões, podendo significar 21 milhões de homens que escolheram não assumir a paternidade, o reconhecimento da filiação, a criação e a educação de seus filh@s. Em outros termos, significa 21 milhões de pessoas filhas da mãe, o que em uma sociedade patriarcal representa demérito. Esse número equivale a mais do que toda a população do Chile (19,1 milhões). Torna-se claro ser a paternidade livre neste país: o homem brasileiro é pai, se e quando quiser.

 

E significa uma profusão de mães solo. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2017), em torno de 60 milhões de lares brasileiros são chefiados por mulheres, algo em torno de 40% das famílias do país. Desse total, aproximadamente 57% das famílias chefiadas por mulheres com filh@s vivem abaixo da linha da pobreza. Com o recorte racial, as desigualdades se agravam: entre as mães negras, 65% dos lares vivem abaixo da linha da pobreza.

 

É importante e necessário dar visibilidade às mães solo que traduzem modos de vida contemporâneos. dedicam cuidados a uma criança – filh@ biológic@ ou adotiv@.

 

A expressão “mãe solteira” — até recentemente consagrada — associa a maternidade a um estado civil, sugerindo falta, carência, não acolhendo a pluralidade de situações que podem estar envolvidas. A vinculação maternidade e estado civil interessa ao patriarcado, que pretende legitimar nascimentos havidos estritamente no interior do casamento, o que fere nossa Constituição de 1988, que baniu toda adjetivação para filhos e filhas. Até então, falava-se em “filh@ legítim@”, “filh@ ilegítim@”.

 

Mãe é resistência, mãe é amorosidade. Celebremos todas as maternidades: mães solo, mães negras, mães indígenas, mães brancas, mães lésbicas, mães bissexuais, mães trans, mães heterossexuais, mães biológicas, mães adotivas. A todas, a sociedade e o Estado devem reconhecimento, valorização, acolhimento, apoio. Todas dão nascimento, amamentam, nutrem, cuidam no presente e gestam o futuro.

 

Darei continuidade ao tema em pauta, que é para mim da maior relevância. Encontramo-nos, portanto, na segunda parte deste artigo. A todas, cumprimentos e abraços.

 

(*) Ana Liési Thurler é doutora em Sociologia pela Universidade de Brasília, consultora em Direitos Humanos das Mulheres, ativista no feminismo anti-capitalista, antirracista, anti-lgbtqi+fobia e na #partidA-DF, Por Uma Democracia Feminista.

 

 

 

 

 

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Um comentário

  1. Prezada Ana Liese. Nós, do grupo “ Mulheres Dizem Não” – temos uma pg no FB com este nome que vc pode consultar e compreender nossa proposta – queremos convidá-la para um bate papo virtual, claro, por causa da pandemia, a fim de compreendermos suas ideias especificamente sobre a revogação da Lei da Alienação Parental. Seguras de que uma mulher, especialmente de esquerda como nós, não se furta ao debate, aguardamos seu contato com brevidade.

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