Existem várias realidades paralelas na Amazônia e no Brasil, mas conectadas. Há este governo, que tem sido um enorme alívio para todo mundo que viveu na floresta nos últimos anos e vem dando demonstrações da retomada pelo Estado de áreas dominadas por criminosos, como no caso da Terra Indígena Yanomami. Mas há, ao mesmo tempo, um Congresso lotado de destruidores da Amazônia e de outros biomas e um cotidiano nas cidades amazônicas em que grande parte das prefeituras e das câmaras de vereadores é dominada por grileiros, madeireiros e garimpeiros. Semanas atrás, por exemplo, o prefeito de Itaituba [no Pará] fez uma reunião pública para estimular os garimpeiros da região do Tapajós a seguir garimpando. Como enfrentar essas realidades?
Eu acho que a gente tem uma boa experiência, que foi provada por dez anos, com o PPCDAm [Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal, criado em 2004]. Foram dez anos de políticas públicas continuadas, mesmo com todas as dificuldades, que depois foram sendo enfraquecidas e, por fim, totalmente interrompidas por quatro anos. Agora, nestes quatro anos [de governo Lula], é manter a presença do Estado. Não é fácil, porque nós temos um conjunto de demandas neste momento. Precisamos olhar para todas as frentes. O que nós temos que parar é de ter a indústria que produz o dano ambiental. Essa é que tem que parar, porque daqui a pouco nós estaremos usando todo o efetivo e os recursos públicos para ficar enxugando gelo.
Esse é um freio que tem a ver com algo muito mais complexo, que é o freio da consciência política, porque nós também decidimos ser uma democracia. Quem vai escolher o prefeito é o povo, quem escolhe o presidente é o povo, quem escolhe os deputados é o povo, e estamos numa situação em que o povo, e infelizmente também o nosso povo da Amazônia, escolheu. Só há um deputado com tradição de resistência que voltou, que é o Airton Faleiro (PT). Os outros todos que vieram não vieram dessa tradição de resistência. Talvez tenham vindo novos comprometidos com essa agenda. Mas os que historicamente estavam comprometidos com essa agenda não voltaram. Então, tem um processo político de disputa que está posto e que tem que ser manejado com muita sabedoria.
É por isso que eu digo que, ainda que existam contradições, eu prefiro colocar o foco naquilo que fortalece. E é a visão política, a decisão política, a sensibilidade política do que vai a favor da preservação, do que vai a favor dos indígenas, do que vai a favor da mudança do modelo. Porque o outro lado já está aí, na lógica de que, para ter liquidez, tem que destruir alguma coisa, tem que destruir a floresta, tem que destruir recursos hídricos, tem que destruir a diversidade, tem que destruir os povos indígenas. Não é essa lógica que já vem desde 300, 400 anos? A outra lógica está sendo preconizada ainda de forma muito tênue. Quais são as vantagens de apostar nessa outra lógica [a da preservação e do respeito à diversidade]? Quais são os instrumentos econômicos que apostam também nessa outra lógica? Porque nem todos vão se mobilizar só pelo coração, como foi a nossa escolha de vida… Ou nem sei se foi uma escolha, né? Se foi uma cardiodecisão que já estava em nós antes mesmo de a gente ter a consciência política dela. Mas nem todos vão se mobilizar pelo coração. Vão se mobilizar pela razão, né? Mesmo que seja a razão ambiental, mesmo que seja a razão social.
Tem o Plano Safra para os grandes e médios, tem um Plano Safra para a agricultura familiar, agora vamos fazer o Pró-Floresta [se emociona], que é o Pronaf [Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar] dos extrativistas, dos castanheiros, dos geraizeiros, dos babaçueiros, das quebradeiras de coco, dos pescadores tradicionais, das comunidades indígenas naquilo que é a sua produção em conformidade com as suas escolhas endógenas, porque elas também têm uma produção valiosíssima.
Eu conversava com a ministra Margareth [Menezes, da Cultura], que gentilmente veio aqui me dar um abraço de aniversário, sobre a ideia de criar uma espécie de royalties para o uso dos motivos indígenas, da iconografia indígena. Quem usar terá que pagar royalties. Como é um processo coletivo, é possível fazer um fundo que vai beneficiar a todos. Há coisas lindíssimas. Inclusive, este é um colar Xavante [aponta para um colar lindo no seu pescoço]. Eu tenho um original Xavante que ganhei, certo, mas essa pessoa aqui [que fez o colar que ela usa], acho que ela faz isso com garrafa PET. Há essas estamparias maravilhosas, que não cansam. Se eu usar uma roupa com flores todo dia ninguém vai aguentar, mas você olhar para [motivos indígenas] não cansa. Tem muitas coisas para a gente fazer numa outra frequência, numa outra direção. E me anima ver as pessoas em 11 ministérios falando da transversalidade.
Quando você lida com uma questão como essa, ela não tem critério de antiguidade. Não importa se a gente estava lá no começo. É importante que todos venham para essa agenda. É o ensinamento bíblico em que, na contratação dos trabalhadores de uma vinha, Jesus fala que uns foram contratados às 5 horas da manhã, outros ao meio-dia e outros no finalzinho da tarde, e no final ganharam todos o mesmo salário. Parece injusto, mas é que só dava para colher toda aquela colheita com os que chegaram na primeira hora, com os que chegaram na segunda hora e com os que chegaram na última hora. Porque, por mais que a gente esteja trabalhando desde sempre [na questão ambiental], só nós não vamos conseguir completar essa nova colheita. Então, precisamos dos que vêm agora e dos que virão depois, né?
Eu, antigamente, às vezes [pensava]: “Meu Deus, essa bisca tava até ontem aí…” [no lado oposto, o da destruição]. Depois, eu passei a me alegrar, sabe? “Caramba, tá percebendo, ela tá vindo. Mesmo que venha por uma outra lógica, com outras motivações políticas, ideológicas, estéticas.” Eu vou repetir agora uma outra coisa: seja por amor a Cristo, seja por vaidade, o importante é que [a pessoa] prega o Evangelho, porque a linguagem do amor fala por si mesma. A linguagem do que é bem-feito, a linguagem do que é ético e do que é estético fala por si mesma. O que eu vejo é esse esforço de a gente fazer com que essa agenda possa ser vencedora. Uma fagulha de luz pode acender outras luzes, né? Talvez seja por pensar assim que eu estou aqui, vivendo esse paradoxo de estar muito preocupada, mas ao mesmo tempo muito animada.
A subjetividade, a cultura, me parece o mais importante. O que chama atenção, na questão da Amazônia, é o desmatamento, a mineração, que são combatidos com ações de impacto. Pode ser que nunca seja possível recuperar a destruição destes últimos anos. Quanto tempo leva para recuperar um rio contaminado por mercúrio? Quanto tempo leva para reflorestar? Mas tem algo que aconteceu nestes últimos anos que me parece muito mais terrível, no sentido de que talvez seja impossível recuperar, que é a destruição da cultura. A maneira mais efetiva de destruir a natureza é pela destruição da cultura. Quando a gente vê adolescentes Yanomami que, no espaço de dois, três anos, foram levados de uma cultura tradicional, milenar, ao uso de álcool e cocaína, ao aliciamento de meninas Yanomami para a prostituição, ao uso de celulares – e não por conta dos celulares em si, mas porque isso entrou na vida deles de repente –, me parece que isso é irrecuperável, porque mudou por dentro. Vi isso acontecer também nas reservas extrativistas da Terra do Meio, essa mudança por dentro, que é a mudança da subjetividade, do seu ser e estar no mundo. Esse é o ataque mais eficaz de governos como o de Bolsonaro. E não há operação do Ibama que resolva. Eu queria te ouvir sobre isso.
As mudanças culturais não impactam o corpo físico, mas a alma. É o lugar do sentido, é o lugar da significação. Essas são as mais difíceis, as mais incontroláveis. Essa vizinhança que nós somos. É resultado do contato do humano com o outro ser humano. E não tem como esse contato ser asséptico, a não ser quando a gente parte da perspectiva de que somos dois reais diferentes, que podemos nos interpelar mutuamente, mesmo que seja para cada um caminhar mais profundamente na sua respectiva direção. Quando a gente parte desse ideal de mundo, aí é possível coexistir. Sem querer induzir que o belo é o que eu vejo, próspero é o próspero que eu acho, e não a beleza e a prosperidade da singularidade da condição social e cultural, da cosmovisão dos indígenas.
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