Publicidade

Guarany é um artista, está na história do rio e até em romance

  • em



A vida de Francisco Biquiba dy Lafuente Guarany, vida longa de 90 anos, não é de plantar em lameiro, nem de pastorear boi, nem de pescar, nem de cortar a lenha para caldeira de gaiola – esses trabalhos comuns a quase todos os viventes do São Francisco.

 

 

Guarany é um artista, está na história do rio e até em romance – Porto Calendário, de Osório Alves de Castro – por causa de sua profissão: é o único homem do mundo que vive da profissão de carranqueiro. Carranqueiro foi uma profissão que surgiu no século passado,no São Francisco, quando todas as barcas usavam na proa enormes figuras esculpidas em madeira, representando cabeças de animais, figuras estranhas – as carrancas. Guarany é filho de um dos primeiros carranqueiros, Cornélio Biquiba [1], mas do que gostava mais era fazer imagem de santo, que aprendeu a esculpir com João Imaginário[2], artista de arte fina. Aprendeu tão bem que uma vez esculpiu dois Cristos, depois botou cada um num prato de balança, os dois pesaram igualzinho. Só deixou de fazer essas belezas de imagens quando precisou ganhar a vida, e fazer carranca era mais negócio: “Tudo que era barca tava usando”. Em 1901 fez a primeira, para a barca “Tamandaré”, de Conrado Correia de Almeida[3]. Tão bem feita que espalhou sua fama pelo mundo inteiro. Nos anos 1930, com o aparecimento dos primeiros barcos a motor, as carrancas foram caindo de moda, os carranqueiros sumindo. Ficou Guarany, com sua fama, vivendo até hoje da profissão. Tem carrancas em museus da Alemanha, da França, da Argentina, dos Estados Unidos. Depois dele só apareceu um artista importante – Davi Miranda, em Pirapora—, mas este não vive da profissão, é marceneiro da Companhia de Navegação, faz carrancas, nas horas vagas, de encomenda. Guarany vive só das carrancas que faz, não dá conta das encomendas feitas pelas galerias de arte. Pequenino, magro e curvado, ele vive os seus dias cavando com um formão as figuras que marcaram época no rio e dele desapareceram como que por encanto. Ficou o mistério em torno de suas origens, discutido em livros, alguns autores chegando a afirmar que foram introduzidas no São Francisco pelos fenícios. E as razões de seu uso seriam religiosas. Guarany, que viu as primeiras saírem das mãos do pai, em fins do século passado, explica tudo com mais simplicidade:

 

 

— Um dia uma barca encostou de tardezinha na praia, tempo bom, a família do barqueiro foi dormir numa esteira na areia. Tinha um menino novo que rolou da esteira, jacaré pegou e levou. Aí o barqueiro achou que devia ter qualquer coisa na barca pra espantar bichos brabos e chegou num mestre carpinteiro e mandou fazer uma figura de cara bem feia. Aí todo mundo começou a botar carranca. E diz também que elas serviam pra espantar assombração, caboclo-d’água, capeta, essas coisas ruim.

 

 

Em Santa Maria da Vitória, na beira do rio Corrente, afluente importante do São Francisco, onde já recebeu até diploma de honra da Academia Brasileira de Belas Artes, Guarany continua a esculpir carrancas. Elas têm expressão estranha, bocarras e dentes enormes que vão para os museus e para os livings ricos das cidades grandes. São o passado do rio, os mistérios do rio.

 

 

 

[texto extraído do livro Tempo de Reportagem – Histórias que marcaram época no jornalismo brasileiro, de Audálio Dantas, ed. Leya, 2012, capítulo À margem, publicado originalmente na revista Realidade, março de 1972, pp. 225-226]

 

 

_______

[1] Personagem de Maria fecha a porta prau boi não te pegar, segundo romance de Osório Alves de Castro, lançado poucos dias após o falecimento dele.

 

 

[2] Personagem de Porto Calendário.

 

 

[3] Conrado Sessenta, também personagem do Porto…

 

 

(*) Por Audálio Dantas na Coluna Travessia, revoada, didivera, no Jornal Brasil Popular. O colunista Joaquim Lisboa Neto é coordenador na Biblioteca Campesina, em Santa Maria da Vitória, Bahia; ativista político de esquerda, militante em prol da soberania nacional.

  • Compartilhe

Deixe um comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *