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Francisco Biquiba Dy La Fuente Guarany por Clodomir Morais

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Foi o profissional de inteligência mais multiforme que existiu na Bacia do Rio Corrente. A natureza lhe permitiu viver mais de um século, a fim que desse vencimento à sua inesgotável capacidade inventiva, sempre em dia com a História e com a Cultura de seu povo.

 

 

Ele era carpinteiro, escultor, pintor, pedreiro, marceneiro e o único vidraceiro do lugar. Como juiz de paz, realizava os casamentos, desde as distantes quadras em que ainda havia gentes que insistiam no casamento religioso, o do padre, e no de São João, por achar que o casamento civil era uma “Invenção da República”, o “Mal do Século”, a ‘Invenção do cão e da Maçonaria “, e que era o mesmo que amancebar”.

 

 

Durante muitos anos, todos os dias, Mestre Guarany ia verificar o nível da precipitação pluviométrica e logo entregar a Seu Ribeiro, ou a Seu Miguel Telegrafista a mensagem ao Ministério da Agricultura. Ele era, pois, o que sabia do serviço meteorológico. Toda vez que o sineiro Cândido Bedocha dava o dobre de finados, na Igrejinha do Menino Deus, Guarany já sabia que, à hora do enterro, ele deveria, portas fechadas, na Capela de Santa Verônica do Cemitério Novo, proceder à punção, na altura do fígado ou do baço do “falecente” a fim de informar ao Ministério da Saúde a incidência de certas endemias rurais freqüentes na Bacia do Corrente.

 

 

Ele era, Ademais, uma mistura cabocla de Miguel Ângelo Buonarroti, Rafael Sanzio, e Leonardo da Vinci, pois, como aqueles super-gênios italianos da renascença, Mestre Guarany, não só pintava (cidades de lapinhas) como erigia, anualmente, seu presépio mecânico, no qual a procissão de fiéis e andor, todos esculpido em madeira, percorrendo a suposta Rua do Riacho, contornavam o Morro do Menino Deus para, minutos depois, reaparecer ante os olhos pasmados dos visitantes. Estes não adivinhavam a invisível grande roda dentada, movida por uma engrenagem simples que maninho, o filho caçula, com uma manivela, acionava uma polía no cômodo vizinho.

 

 

Por volta dos anos 20, quando o intendente de turno exibiu o primeiro velocípede esnobado por um dos seus sobrinhos, nunca imaginou que no dia seguinte, Guarany fosse capaz de fazer um velocípede de madeira com roda de cambotas. O povo vibrava mais com o triciclo de pau, “indústria local”, duque com o seu congênere vindo da capital. Foi um sucesso!

 

 

Como se sentisse reptado, o intendente, nas novas férias escolares fez vir outro sobrinho estudante da capital para esnobar montado em uma bicicleta. A exibição foi na rua dos cais. A geringonça de apenas duas rodas impressionou tanto aos tabaréus e brejeiros, que um destes, aprovado, pensando que estava diante de um gigantesco louva-adeus, foi correr e terminou caindo no rio, no que gerou uma grande algazarra dos circunstantes. Na semana seguinte, em horas noturnas, na várzea onde se jogava futebol, entre os riachos e os quintais da Rua de Cima, Chico, o filho adolescente de Guarany, levava uma queda atrás da outra, no torturante aprendizado do ciclismo, em bicicleta de madeira que Guarany fabricou com tração na roda dianteira e sem precisar de corrente de transmissão.

 

 

No que diz respeito à política, Mestre Guarany nada tinha de anacrônico, senão, ao contrário, sempre esteve em dia com a marcha da História, sobretudo depois de 1919, quando Tibúrcio Paes Landim, fundou com Claudemiro Santos o jornal “A Idéia”, cuja segunda edição foi empastelada pela polícia a mando do intendente, e o prelo, uma primitiva prensa, com tipos e tudo atirados às profundezas do Rio Corrente.

 

 

Ele fez parte da dissimulada ala esquerda da UDN local, juntamente com Mário de Campos Cordeiro (ex-membro da Coluna Prestes), o padeiro Anselmo Normanha, o agricultor Arnaldo Pereira, o escriturário Ozias Almeida, o alfaiate Vavá de Benevides Prado, o licorista Hermes Almeida, o comerciante Antonio Lisboa de Morais, o funcionário dos correios Ely Magalhães, e o médico José Borba.

 

 

Com essa base social, foi possível se criar, em 1950, a Sociedade dos Trabalhadores de Santa Maria da Vitória, STSMV, a exemplo da “Sociedade Operária” que, no vizinho município de Santana, por inspiração de Manuel Cruz, foi fundada anos antes. Mestre Guarany era o vice-presidente da STSMV, porém foi o seu diretor de jure e de facto pois o presidente (Clodomir Morais) teve de se ausentar da área.

 

 

Com a misteriosa morte de seu filho Ulisses, oficial do exercito e excelente músico (ao ser transferido da prisão de Aracaju para Porto Alegre), perseguido pelo fato de se alinhar com o general nacionalista Estilac leal, ministro da Guerra do governo constitucional de Getúlio Vargas, Mestre Guarany radicalizou e passou a ser o distribuidor clandestino de publicações políticas de cunho proletário, até que sobreveio o covarde assassinato de prefeito Dr. José Borba, em 1952, por um cabo de polícia local.

 

 

O temor frente àquela execrável violência se encarregou de arrefecer a mística da Sociedade dos Trabalhadores de Santa Maria da Vitória. Muitos dos dirigentes e associados tiveram que migrar. Guarany, sim, não arredou o pé de lá. No entanto, a partir, daí, ele passou a se dedicar quase exclusivamente à escultura de carrancas de barcas, que sempre foi o seu forte.

 

 

Nessa arte nunca lhe faltaram encomendas, principalmente depois que fez uma carranca para a maior barca que circulou no São Francisco e afluentes, a “Mississipe” de Mariano Borges, que transportava 20 mil rapaduras (40 toneladas). Esta barca, que foi construída por Zé Timóteo, Camilo de Martinha e Antônio Calafate, ocupava 20 remeiros nas duas coxias, movendo 18 varas e duas velas na subida; e na voga, 5 remos de cada lado.

 

 

Mesmo depois que o motor de centro e os dois “mastros de caravela” sergipanas proscreveram as antigas barcas, Guarany continuou atendendo as numerosas encomendas (inclusive do estrangeiro), até que já não teve mais força para a marreta, a enxó e o formão com que esculpia suas carrancas magistrais. Estas figuram hoje dentro e fora do país, chegando mesmo a inspirar o poeta Carlos Drummond de Andrade em versos a Mestre Guarany. Mais ainda: elas motivaram o convite para que esse escultor negro de Santa Maria da Vitória ir a um evento internacional na Nigéria onde teria a oportunidade de conhecer descendentes de escravos forros que regressaram à África no século passado. Porem o nosso artista maior da escultura são-franciscana recusou o convite alegando que jamais entraria em um avião e acrescentavam: – “nessa barca voadora eu mesmo não me meto. Ela só me mata se encalhar de cima de mim…”.

 

 

Talvez por esta obstinação é que o Mestre Guarany viveu uma centúria e lucidamente. Faleceu aos 103 anos de idade, sempre firme na sua postura progressista sem alarde, colaborando, ademais, com a geração de jovens de vanguarda que criaram o jornal “O Posseiro”, a Biblioteca Campesina, a “Casa da Cultura Antonio Lisboa de Morais”, a Tipografia “Mestre Zinza”, o METRU (Museu Escola de Tecnologia Rural), hoje reunidos na Associação de Desenvolvimento Rural Integrado, ADERI, de Santa Maria da Vitória, no Oeste Baiano.

 

 

(*) Por Clodomir Morais. Texto escrito em Maceió, Alagoas, em 19 de novembro de 1995.

 

 

(*) Por Clodomir Morais na Coluna Travessia, revoada, didivera, no Jornal Brasil Popular. O colunista Joaquim Lisboa Neto é coordenador na Biblioteca Campesina, em Santa Maria da Vitória, Bahia; ativista político de esquerda, militante em prol da soberania nacional.

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