A classe dominante brasileira realizou, ao longo do tempo, o mais infame processo de degradação das condições sociais no País, atingindo todos os pobres e, praticamente, todo o território brasileiro. Não há estado ou Região Metropolitana em que as periferias e favelas não ostentem degradação das habitações, da infraestrutura urbana, das condições de saneamento e da ausência de condições mínimas para transporte. Os miseráveis que vivem nesses guetos não têm qualquer cobertura da autoridade pública. São os deserdados dos governos.
Evidentemente que isso tem culpado. E a culpa, naturalmente, recai sobre a classe dominante, que, ao longo do tempo, ignorou as necessidades das massas. Chegou a hora de se perguntar até quanto tempo essa situação vai perdurar. Essa vergonha nacional tem de ter um fim, ou, pelo menos, um encaminhamento para o fim. Entendemos que o meio de virar esse processo é pela política. Os miseráveis, sim, são cidadãos. Estão investidos de direitos constitucionais. Bramindo a Constituição nas mãos, devem buscar a aplicação de seus direitos.
Os miseráveis dos tempos de Marx, sem vínculos de classe, eram chamados de lúmpen proletariado. Não há como aplicar o epíteto ao Brasil de hoje. De fato, o lúmpen de Marx estava despido de todo direito. Não é o caso no Brasil dos séculos XX e XXI. Agora, trabalhadores e pobres, e mesmo jovens de 16 anos, no Brasil, podem não ter renda ou emprego, mas têm um título de eleitor e se tornam, por isso, cidadãos. Esses cidadãos, tendo direitos, podem reclamá-los no processo eleitoral, como cidadãos e não necessariamente como simples trabalhadores.
O que falta, por enquanto, a essa cidadania é o fogo capaz de incendiar um movimento político com propósitos deliberados. Em países como Estados Unidos e Índia o reconhecimento de direitos amplos de cidadania precederam e foram decorrência os grandes movimentos sociais no século XX, os movimentos civis ou os movimentos pacíficos pela independência. Uma vez reconhecidos, foram incorporados ao estatuto básico civilizatório dessas nações, num caso via afirmação de direitos civis nos Estados Unidos, de outro sustentando a independência nacional indiana.
O Brasil vive uma situação peculiar. A cidadania precede os direitos básicos teóricos, mas, estes, realmente, não são reconhecidos enquanto direitos objetivos. Em tese, os cidadãos têm direito à saúde, educação, moradia, transportes, saneamento básico, tudo consagrado na Constituição. Teoricamente, são direitos para serem aplicados pelo poder público, essencialmente, pelos municípios. Entretanto, na estrutura de poder, o município é o menos contemplado com recursos financeiros e despidos de capacidade de financiamento.
Se compararmos a situação objetiva dos municípios com os privilégios que a União se concede no sistema tributário, só existe uma alternativa para romper com essa situação: a sociedade civil, sobretudo seu lado marcado pela pobreza, deve fazer uma sublevação pacífica do tipo que se fez nos casos norte-americano e indiano, a fim de mudar o caráter social e político do regime. É na esteira desse processo que o povo deveria colocar como solução para os problemas efetivamente sociais uma sucessão radical de movimentos sociais em escalada, preliminar de uma revolução pacífica.
Um nível efetivo de radicalismo, sem violência, é fundamental nesse processo. Recorde-se que a direita impôs ao conjunto do país a agenda mais radical jamais proposta aqui, as reformas trabalhista e previdenciária, assim como a agenda de rapina sobre o petróleo. É fundamental trazer de volta essas agendas, inclusivo o projeto revogatório proposto por Roberto Requião. Entretanto, aquilo que considero absolutamente fundamental no contexto brasileiro é, sobretudo, a imposição de baixo para cima do que chamo de projeto Cidade Cidadã (emprego garantido/trabalho aplicado), que assegura uma renda mínima de sobrevivência a todos os brasileiros, ao qual voltarei oportunamente.
J. Carlos de Assis é jornalista e economista