Neste domingo (14/11), comemora-se o Dia Nacional da Alfabetização, mas um levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2018, indica que há mais de 11 milhões de analfabetos no Brasil. Especialistas afirmam que a filosofia de Paulo Freire precisa se tornar uma política pública para que o País supere as desigualdades sociais
Com títulos de Doutor Honoris Causa de 48 universidades brasileiras e estrangeiras, Prêmio de Educação para a Paz da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), em 1986, e indicado ao Prêmio Nobel da Paz em 1995, o pernambucano Paulo Freire dispensa apresentações, já que seu trabalho é reconhecido em todo o mundo.
Mas então por que este pensador tem sido tão demonizado no Brasil? Simples. Empenhadas em manter seus privilégios, nossas elites dirigentes criaram, historicamente, mecanismos concretos para manter a população na ignorância e no atraso, inclusive na área da educação. E o que Paulo Freire elaborou, mais do que um simples método de alfabetização, foi uma filosofia pedagógica libertária que leva os estudantes a romperem com os grilhões dessa dominação por meio da construção de um pensamento crítico.
Nesta entrevista especial para o Jornal Brasil Popular, a pedagoga Rubneuza Souza e o professor de teatro, Bruno Peixoto, mostram como a filosofia freireana é usada no País pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), que vem promovendo um método bem-sucedido de alfabetização baseado em uma educação crítica.
“Para entender o pensamento do Paulo Freire, é importante entender a constituição da nossa sociedade. Temos uma sociedade extremamente desigual, fruto de sua gênese mesmo. O Brasil foi fundado num tripé: latifúndio, monocultura e trabalho escravizado. Esses elementos vão constituir o povo-massa que vê a ordem social como sagrada. Tivemos quase quatro séculos de trabalho escravizado e a condição de escravo é não ver a humanidade do outro. Do ponto de vista dos dominadores, escravo não é gente, não é sujeito de direito. Essa negação da humanidade das pessoas foi prolongada após a escravidão. E essa cultura vai garantir que esses trabalhadores não tenham acesso aos bens materiais e culturais”, observa a pedagoga Rubneuza Leandro de Souza, mestre em educação contemporânea pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e integrante do setor de educação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) e do Comitê Pernambucano de Educação do Povo.
Ensino dual
Para se ter uma ideia do apartheid social e educacional no Brasil, somente no começo do século XX as escolas públicas começaram a tomar forma nas principais cidades brasileiras. O País vivia o início de seu processo de industrialização e passou a precisar de mão de obra. Mas a educação pública ainda era muito restrita e nela se refletia o histórico interesse das elites dominantes de manter as camadas sociais mais baixas excluídas das riquezas que elas mesmas produziam para garantir os lucros do patronato.
“Quando abre para as camadas sociais no Brasil, a escola vai abrir de forma dual, ou seja, uma escola de excelência para poucos e uma escola da técnica para os trabalhadores. Então, você vai aprender a apertar botão. Se assistiu ao filme Tempos Modernos, do Charles Chaplin, você vai entender que é apenas dominar a técnica. E essa educação dual vai ser um elemento estruturante da educação brasileira: você tem, então, uma escola de excelência para poucos e, para o conjunto da sociedade, uma escola de formar mão de obra para o mercado”, explica a pedagoga.
Ela observa que, nesse modelo de educação, o conhecimento torna-se fragmentado e perde a dimensão de totalidade. “Você tem aqui o taylorismo e o fordismo orientando esse tipo de educação. Então, vamos ter o conhecimento fragmentado por disciplina – hora de português, hora da matemática, hora da ciência… Ou seja, quebra-se esse conhecimento. A questão do pensamento crítico é a pessoa poder ter uma dimensão de totalidade para relacionar as coisas. Então, a organização do trabalho pedagógico também responde a essa dimensão de fragmentar os conhecimentos, de colocá-lo em caixinhas, porque aí você também desenvolve um pensamento fragmentado, sem ser dialético, de não pensar as coisas dentro de uma dimensão dialética. Esse é outro elemento”, analisa Rubneuza.
Pensamento freireano
Foi nas décadas de 1950 e 1960, quando o Brasil vivia um processo de efervescência, de organização dos trabalhadores, de luta pelos direitos trabalhistas e pela reforma agrária, que Freire começou a pensar a educação. Para isso foi fundamental o trabalho que desempenhou no Serviço Social da Indústria (Sesi), após abandonar a advocacia. No Sesi, ele começa a mediar a relação entre os educadores e os pais (os trabalhadores que tinham filhos estudando na entidade).
Nas reuniões de pais e mestres, eles pensavam a pauta e Freire foi observando determinadas coisas que tomou como princípio de seu sistema de educação. Uma delas é a de que não dá para ensinar sem conhecer o entorno social e geográfico dos educandos. Outro elemento é que os conteúdos devem partir do universo vocabular dos estudantes. “Isso é um elemento importante, que ele depois vai elaborar, de que as questões, os conteúdos da escola têm de ser socialmente úteis. Eles têm que vir desse universo vocabular dos estudantes, têm que ser significativos”, pontua a pedagoga.
Freire deixa então o Sesi e vai para a Universidade do Recife, hoje Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Passa em concurso, vira professor e leva esses princípios para desenvolver um trabalho de extensão em alfabetização de jovens e adultos. Trabalhando com o universo cultural dos estudantes, desenvolve uma metodologia para alfabetizar pessoas em tempo curto. Depois faz um trabalho com mais gente em Angicos, no Rio Grande do Norte, onde alfabetizou 300 pessoas em apenas 40 dias.
No campo educacional, predominava, então, a ideia de que a educação deveria ser neutra. Freire vem afirmar que, ao contrário, a educação é um ato político. Em uma sociedade injusta, como a nossa, quem advoga uma pretensa neutralidade está afirmando uma ideologia. E a educação do pensador pernambucano não deixa dúvidas. Ela tem partido, ela toma um lado: o dos oprimidos. Daí a necessidade de ensinar em favor dos mais pobres, tendo o diálogo como elemento essencial nessa mediação.
“Veja que a gente tinha uma educação muito hierarquizada, em que o professor mandava e o estudante obedecia. E Paulo Freire propõe uma educação dialógica, como uma educação horizontal, que não fosse de cima para baixo. Esses são princípios que ele vai construindo. E quando toma os conteúdos dessa realidade, você leva para a sala de aula e problematiza essa realidade. E aí ele vai dizer que a leitura de mundo precede a leitura da palavra. Ou seja, a leitura de mundo vem antes, quando eu problematizo, quando enxergo, quando pego uma questão que os trabalhadores dominam. Ele vai falar sobre aquilo. E aí você vai dando um significado para essas coisas”, pondera a pedagoga.
Ela cita como exemplo o estudo da palavra “tijolo”. Quando o estudante vai estudar a palavra tijolo, ela já tem um significado: quem é que faz o tijolo, quem constrói a casa, quem fica com a casa. E quando vai para a decomposição dessas palavras, os estudantes já decodificaram o mundo, o universo onde estão, as injustiças, buscando desvelar as causas dessa injustiça. Isso é um pensamento crítico. Isso é o que faz pensar e não aceitar as coisas como naturais, às quais deveriam se adaptar. Não, a realidade não é. A realidade está sendo. Ela é possível de ser alterada. Esse é um pensamento crítico. E é por isso que Paulo Freire incomoda.
“Eis aí o elemento dessa educação conscientizadora, de trazer os problemas para desvelar suas contradições. E com uma ação concreta – porque aí o tema gerador tem muito isso. Você toma o conteúdo da realidade, problematiza e busca uma solução para esse problema. Se ele é de cunho prático da comunidade ou se é de conteúdo político, de reivindicar com o poder público, você vai fortalecer a organicidade dessas pessoas para fazer a luta pela transformação necessária. Na medida em que você vai transformando as coisas, você também vai se transformando. É o operário em construção, do Vinícius de Moraes. O operário faz a coisa e a coisa faz o operário”, afirma Rubneuza.
É aí que surge uma questão fundamental para o professor. Diante do dilema de que existe uma educação que oprime e uma que liberta, chega-se à lógica de que existe uma sociedade que oprime e outra que liberta e de que é possível construir um processo de libertação dentro da educação. “Existem dois projetos em disputa. Quando a gente adota um lugar ou opta por determinadas ideias, comportamentos e projetos, está assumindo um lado. Por isso que Paulo Freire nos questiona: num ato educativo, contra o que eu educo e contra quem eu educo? Portanto, a favor do que eu educo e a favor de quem educo? Por isso que a educação popular tem esse elemento de tomar partido, de ter uma concepção de educação que contribui para que as pessoas se organizem e façam as transformações necessárias”, conclui a pedagoga.
Pedagogia do Oprimido
A partir do experimento de Angicos, em 1963, quando conseguiu alfabetizar praticamente toda a cidade em 40 horas, e do projeto De Pé no Chão Também se Aprende a Ler, em comunidades carentes de Natal (RN), o método freireano de alfabetização torna-se, então, uma política de Estado dentro do contexto das reformas de base do ex-presidente João Goulart, abortadas pelo golpe militar e civil de 1964. Paulo Freire entra então na primeira lista das pessoas forçadas pelos militares a deixar o Brasil. Vai para o Chile, onde tem contato com o movimento campesino e com educadores daquele país. E foi juntando essas experiências – as do Nordeste e a do Chile – que brotou a Pedagogia do Oprimido. Mas Paulo Freire não pararia por aí.
“Não considero Freire um homem de um método só. No nosso estudo, partimos da Pedagogia do Oprimido, que coloca a questão da luta de classes como elemento estruturante para se pensar o processo de alfabetização. É ela que leva à consciência de um modelo de educação bancária, ou seja, formada para a questão do mercado e não para a leitura de mundo. Este conceito de leitura de mundo que antecede a palavra começou a nascer naqueles experimentos. Logo depois ele escreve a Pedagogia da Autonomia, propondo nova relação entre educadores e educandos. E nos anos 1990 começa a falar sobre a Pedagogia da Pergunta, ou de saber perguntar os porquês das coisas. Nessas três obras, a questão de uma educação crítica e de um olhar crítico para a realidade é fundamental. Mas como Freire ficou muito tempo afastado do País, isso nunca conseguiu virar uma política de governo. Portanto, isso nunca chegou na escola pública, o que gerou uma enorme contradição”, analisa Bruno Peixoto Cordeiro, professor de teatro e integrante da Companhia Ensaio Aberto.
Bruno coordena o projeto Em La Barca Jornadas Teatrais, um coletivo que trabalha com teatro documentário, pelo qual seu grupo produziu, em 2018, o livro A Casa e o Mundo Lá Fora: Cartas de Paulo Freire para Natercinha. Trata-se de um relato real de cartas que o pedagogo trocou durante o exílio com uma criança de nove anos, logo depois que ele teve que deixar o Brasil. O que motivou a realização do trabalho foi o movimento Escola sem Partido, que, então, vivia seu auge no Rio de Janeiro.
“A gente achava que deveria produzir um trabalho que pudesse ser encenado em qualquer espaço para estar levando este debate sobre Paulo Freire, um ponto de vista novo sobre o Paulo Freire, principalmente para o ambiente escolar. E a gente foi numa série de escolas, seminários, participamos de assembleias, inclusive de sindicatos e de entidades do Rio de Janeiro. A gente paralisou no contexto da pandemia, mas está retomando agora. Inclusive acabamos de voltar de uma viagem a Angicos onde fomos fazer uma pesquisa de campo com ex-alunos de Freire que passaram pelas 40 horas e que ainda estão vivos, conta o professor.
Iniciativas isoladas
Bruno destaca que hoje, no Brasil, a pedagogia freireana é mais acessível em escolas particulares, voltadas para os filhos e filhas da elite, do que na escola pública, onde realmente ela deveria estar, como um elemento de conscientização crítica, de leitura de mundo, para a transformação de uma realidade profundamente desigual. “A gente não ter conseguido, de uma forma contínua, que isso tenha sido implantado novamente em nenhum tipo de governo desde então ajuda a explicar por que Paulo Freire fica muito distante de ser completamente implementado na escola pública. A não ser por iniciativa de algum professor ou professora freireana ou de algum diretor ou diretora freireana. Mas isso configura iniciativas isoladas e de alcance muito curto. Isso nunca virou uma política pública. E isso explica um pouco também uma série de desmontes em educação que a gente vem sofrendo”, diz o professor.
O antropólogo Darcy Ribeiro costumava dizer que a crise na educação brasileira não é uma crise, mas um projeto. O que tem sindo confirmado historicamente. Isso explica os espaços das escolas públicas da educação de base funcionando de forma profundamente precária. E não dá para se pensar a educação por uma perspectiva libertadora, como coloca Paulo Freire, se estudantes e professores operam em escolas abandonadas pelo poder público.
“E aí a gente entende o quanto esse projeto de que fala o Darcy Ribeiro vem se impondo ao longo de muitas décadas. E que nem os governos do PT conseguiram reverter na educação de base. Os governos do PT foram fundamentais quando propuseram programas para democratizar o acesso ao ensino superior. Mas a gente não teve programas do mesmo tamanho e com a mesma preocupação para reformular toda a educação de base. E aí chega uma hora em que a conta chega”, pondera o professor de teatro.
De fato, a conta chegou. Hoje, quando o País se depara com um governo assumidamente bancário, essa realidade dramática se torna mais nítida, a ponto mesmo de vermos um Ministro da Educação dizer que a universidade não é um lugar para todos e defender o ensino em casa. Ou que se aproveita do momento pandêmico da covid-19 para tentar implantar, o máximo possível, a questão do ensino remoto como política pública de governo, sem atentar para o fato de que essa questão tem uma série de contradições no ensino público. Afinal, esses estudantes não têm o mesmo acesso à Internet ou a equipamentos minimamente funcionais para acessarem as aulas, o que cria um desnível na formação que só vem se acirrando ao longo do tempo.
MST
Apesar da falta de vontade política do Estado, uma luz brilha no fim do túnel. Mais precisamente na área rural do Maranhão. Em parceria com o governo estadual, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) vem promovendo um método bem-sucedido de alfabetização baseado em uma educação crítica, com uma leitura de mundo voltada para um processo de transformação da realidade. Mais de cinco mil trabalhadores rurais adultos estão sendo educados nesse processo, fazendo brotar as raízes populares que Paulo Freire plantou.
Embora esse experimento do MST esteja sendo realizado em todo o Brasil, ele vem funcionando melhor no Maranhão em razão da parceria com o poder público. Mas Bruno lembra que esse é um trabalho longo e difícil, pois o processo de desestruturação da educação pública brasileira vem se impondo desde o golpe militar de 1964. “Então, é para a gente correr atrás de um prejuízo de mais de 60 anos. E para que isso aconteça, diversos atores sociais precisam estar trabalhando em outro tipo de mobilização”, prega.
SEJA UM AMIGO DO JORNAL BRASIL POPULAR
O Jornal Brasil Popular apresenta fatos e acontecimentos da conjuntura brasileira a partir de uma visão baseada nos princípios éticos humanitários, defende as conquistas populares, a democracia, a justiça social, a soberania, o Estado nacional desenvolvido, proprietário de suas riquezas e distribuição de renda a sua população. Busca divulgar a notícia verdadeira, que fortalece a consciência nacional em torno de um projeto de nação independente e soberana. Você pode nos ajudar aqui:
• Banco do Brasil
Agência: 2901-7
Conta corrente: 41129-9
• BRB
Agência: 105
Conta corrente: 105-031566-6 e pelo
• PIX: 23.147.573.0001-48
Associação do Jornal Brasil Popular – CNPJ 23147573.0001-48
E pode seguir, curtir e compartilhar nossas redes aqui:
https://www.instagram.com/jornalbrasilpopular/
️ https://youtube.com/channel/UCc1mRmPhp-4zKKHEZlgrzMg
https://www.facebook.com/jbrasilpopular/
https://www.brasilpopular.com/
BRASIL POPULAR, um jornal que abraça grandes causas! Do tamanho do Brasil e do nosso povo!
Ajude a propagar as notícias certas => JORNAL BRASIL POPULAR
Precisamos do seu apoio para seguir adiante com o debate de ideias, clique aqui e contribua.