“Eles combinaram nos matar. A gente combinamos não morrer”, escreveu Conceição Evaristo, escritora negra, criada em uma favela em Minas Gerais. A combinação permanece em um Brasil onde o racismo estrutural é cultivado e incentivado pelo Estado. A última versão da Constituição (1988) assegura que todos são iguais perante as leis. Não é bem assim. No triângulo de poderes do Estado (Legislativo, Executivo e Judiciário), a aplicação da lei, ou não, está colada à cor da pele. Um padrão em que os negros e negras ainda não são vistos como seres humanos.
Os brancos, ainda que sejam minoria na composição demográfica do país, detêm a hegemonia nas instâncias de decisão. E seguem uma orientação do então presidente Getúlio Vargas aos imigrantes europeus de beneficiar e cuidar dos seus iguais. Ou seja, tratamento equânime e oportunidades só para os brancos. Uma construção racista do século 16.
Não conseguimos ainda atravessar os minados terrenos do Judiciário e da segurança pública. Com raríssimas exceções, quase imperceptíveis, nesses dois setores, os negros que desconhecem sua origem ou a negam agem como os capitães do mato: aprisionam, torturam e matam o seus iguais. As cenas nas comunidades de periferia, no Rio de Janeiro, são inquestionáveis. Como explicar as balas perdidas encontradas em corpos negros? O racismo cotidiano foi banalizado, bem como a morte dos negros pela mãos dos representantes do Estado.
A igualdade de direitos, estabelecida pela Constituição, figura como letra morta. A balança da Justiça sempre tende a pesar mais em relação aos pretos e pardos, que são maioria nas prisões, nas taxas de desemprego, nos índices de mortalidade pelas mãos das forças de segurança. As mulheres e as crianças negras são mais violentadas sexualmente.
Os algozes, no entanto, esqueceram, ou não deram importância ao nosso compromisso: “a gente combinamos não morrer”. A nossa trajetória de resistência, o nosso desejo de viver e não deixar matar os nosso iguais têm efeito corrosivo nas estratégias dos não negros. Por mais difíceis que sejam os obstáculos, conseguimos transpô-los na educação, na ciência, na tecnologia, na saúde, na preservação da cultura e dos costumes de nossos antepassados e ancestrais.
Como “combinamos não morrer”, frustramos nossos oponentes. Hoje (25/7), comemoramos o Dia da Mulher Afro-Latino-Americana e Caribenha. É delas que falamos: Mulheres negras brilharam na literatura, como trabalhos inspiradores, e que merecem, honrosamente, serem lembradas em todos os tempos. Maria Firmina dos Reis, maranhense, nascida em 1822, autora do romance Úrsula, publicado em 1859, e tido como o primeiro de uma mulher no Brasil. Carolina Maria de Jesus, nasceu em 14 de março de 1914, em Minas Gerais, e seguiu para São Paulo. Como compositora e poetisa, ela escreveu Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, um clássico, traduzido e publicado nos Estados Unidos, além de outras obras.
Lélia Gonzalez, filósofa, antropóloga, cujos estudos atravessaram mares e se tornaram referência a pesquisadores e estudiosos, apontou caminhos para as feministas, além da militância no movimento negro, contra o racismo e o reconhecimento de direitos do povo afrodescendente. A mineira Conceição Evaristo escreveu PonciáVicêncio, obra publicada em 2003 e que se tornou um marco da literatura negra ao abordar a discriminação por raça, gênero e classe.
Muitas outras mulheres negras contribuíram com obras icônicas para a literatura brasileira e tiveram seus livros reconhecidos. Muitas outras ainda precisam ser reconhecidas em níveis superlativos. Isso ficou bem nítido no Festival Latinidades 2022 (foto), realizado no Museu Nacional da República. Um dos palcos do evento recebeu a segunda edição do Julho das Pretas que Escrevem no DF. Um desfile de pequenas, mas grandiosas, mostras de trabalhos literários produzidos pelas mulheres da periferia ou do centro da capital da República, mas pouco conhecidos pelo grande público. Um espetáculo que, pela primeira vez, chegou ao Latinidades, levado pelas mãos da jornalista e escritora Waleska Barbosa.
O festival mostrou que o povo negro está vivo e mais fortalecido. Exibiu mulheres mais audaciosas e sem disposição se aquietar ante o machismo, o racismo ou quaisquer atitudes que as depreciem ou tentem subjugá-las ao patriarcalismo e ao machismo. Recusam-se a ficar inertes diante da violência. Elas são parte do acerto: “a gente combinamos não morrer”.
(*) Por Rosane Garcia, jornalista, para o Jornal Brasil Popular
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Rosane Garcia se formou em jornalismo em 1981, pelo UniCeub. Fez estágio no Correio Braziliense, onde trabalhou, como repórter até 1986. Em seguida, foi para a Folha de S.Paulo, seguiu para a sucursal do jornal Zero Hora, passou pelo O Estado de S.Paulo e Jornal do Brasil.
Ao longo da carreira se dedicou às causas sociais, com foco nas questões indígenas e no movimento dos trabalhadores e trabalhadoras rurais. Hoje, é subeditora de Opinião do Correio Braziliense.
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